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Manuscrito




De repente deu uma vontade enorme de levantar da cama, abrir as janelas e respirar ar fresco. Ouvir o barulho dos carros passando bem à frente. Olhar as pessoas ao redor e criar finais felizes para cada uma delas. Adivinhar signos, fazer combinações malucas e rir sem parar. Contar estrelas, adivinhar cores e não ver o tempo passar. Quem sabe me virar do avesso, cortar o cabelo, colocar mais espelhos em todos os cantos desse apartamento. Usar menos roupa, pisar descalça na grama molhada, tomar banho frio. De chuva. Só a minha vontade enorme de me manter em silêncio, conversar com o íntimo, aquecer por dentro, respirar tranquila e ser minha outra vez. Dançar “Lets get it on” pela casa sem pudor nenhum. Aliás, por que não? Tirar o telefone do gancho, sair sem maquiagem, comer em cima da mesa. Arriscar a vida, roubar no baralho, transar no sofá da sala, com as cortinas abertas e o sol estralando na janela. Todos passando. E por qual motivo não? Censurar o sutiã, vestir sandália quando todos disserem que não. Dizer que sim quando sim, negar quando não, e jamais desviar o olhar. Olhar dentro, olhar o corpo e ler por inteiro. Ou quem sabe não por gelo no whisky e virar tudo de uma vez. Não pensar, não pensar, não pensar... só dessa vez. Ir sozinha à um show, pegar a estrada sem o menor sinal de parada. Entrar no ônibus errado por bobagem, olhar a paisagem, não responder aquela mensagem, não telefonar, não olhar pra trás. Vestir a camisa de alguém duas vezes maior e cozinhar algo novo para o café. Vinho branco ao invés de tinto. Tatuar o que vier na cabeça. Arriscar uma vez. Tomar sol num jardim bonito e colocar todas as flores pra fora, soltar as borboletas e preencher de luz. De improviso escrever uma música, pular de paraquedas, tomar banho de mar à noite. Gritar o que sinto – e tanto – que não cabe do lado de dentro. Chorar uma noite inteira. Transbordar o que preciso. Mergulhar com o corpo todo, mesmo que seja em outro, sem pensar em roupa, água, no copo meio cheio, nas amarras, no mundo girando, nos cometas passando, na vida, no depois, no amanhã. Mergulhar sem pensar no fundo, no acaso, nos dados virados, no fim do jogo. Só apostar, entrar na mesa, dar as cartas e dobrar a aposta. Arrumar as gavetas, jogar os papeis amassados, resolver a vida, apagar aquele número, esquecer o nome e dizer adeus.



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