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Coração num barco de papel




O telefone toca.


A ligação termina.


A porta se abre e ele está ali, já sem camisa, corpo magro, suado, quase apagando de tão pálido, se segurando pelos cantos, arrastando-se com faíscas de vida, se apoiando no que não tinha; nas lembranças, num sopro, no quase, na falta. Não queria que visse meu desespero, mas ele via, e então escondia minha face perturbada, quase sem esperança, murmurando e pedindo a qualquer santo, entidade, figura mitológica, mães de santo que já conheci - e poderia conhecer - anjos da guarda, astrólogos do jornal de domingo ou gênios da lâmpada, ao ver tudo que não queria, mas via, e falava com uma voz baixinha, que por um triz não saia “tudo ficará bem”. Mas era tudo um grande talvez. Maldito talvez. Só conseguia sentir o coração atravessar o peito e entrar numa espécie de transe desconhecido e impactante. Suplicando aos quatros cantos, fiz quarenta e duas promessas e teria feito mais trinta se precisasse. Quis ajoelhar-me, desistir de tudo, enclausurar-me, pedir perdão, cantar aquelas canções, por no colo e dizer que sentia demais por todos esses anos, mas nada disso seria suficiente. Enquanto isso me olhava cheio de dúvidas, com aquele par de olhos brilhantes e tão marejados, que ali caberiam todos os barquinhos de papel que me ensinou a dobrar. Olhos esses, que em silêncio me faziam jurar que chegaríamos a tempo, que atravessaríamos todos os sinais em vermelho dessa cidade, para dar tempo de salvar tudo antes que o mundo se apagasse. Então os olhos não se fechariam e ficaríamos todos bem.


Dizia que sim, desesperadamente sim, mil vezes correria aos quatro cantos, atravessaria todo horizonte, e se necessitasse, arrumaria chaves, arrombaria portas, ligaria para o padre, ao porteiro, carteiro, ou ao chefe de todos eles, e também algum parente distante com alguma ideia mirabolante, aliás, por que não? Sabia que sim e por isso a ligação. Não que estivera com o número pregado na geladeira ou na discagem rápida. E por que não? Por que não vim antes? Duas horas antes. Um mês antes, ou dez minutos que seja. Por qual motivo não liguei pedindo pra que ficasse? Ou para contar que recebi a conta de luz, que achei naquela padaria o pão francês que gosta, ou qualquer bobagem como disfarce, para dizer que estava fazendo uma falta danada. Que escrevi cartas e continuei a ouvir nossa rádio, comprei camisa com aquele botão bonito e às vezes me deparava com a incerteza diante da janela da minha casa. Mas só o que sabia dizer era que tudo ia ficar bem, assim fingir que eu não era eu, mas eu era...


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